Mais um ano se passou e continuo sem entender por que o professor de história exigiu que eu decorasse o nome dos doze Césares. Fui cobrado, como se o desconhecimento dos imperadores romanos me incapacitasse para a vida. Por que tive de aprender que albicastrense é o cidadão natural de Castelo Branco, cidade com 50 000 habitantes, na Beira Baixa, em Portugal? Num fim de semana fui ao fundo do poço para fazer uma redação sobre "O fundo da garrafa". Nunca usei um número com mais de quatro casas decimais, porém o valor de 3,1415926535 caiu numa prova. Pode? Sim, podia.
Hoje, não pode mais. Ainda bem. A escola atual baniu a cultura inútil. No entanto, também relegou a segundo plano assuntos importantes, como a compreensão e o uso da língua. Não sabemos ler nem escrever, mesmo depois de graduados no ensino superior. Pode? Sim, pode: 38% dos formandos nas faculdades são analfabetos funcionais. O quê? Temos doutores analfabetos? Sim, temos. Muitos. No Enem, num universo de 6 milhões de examinados, mais de 500 000 tiraram zero na redação. Pode? Sim, pode. Acaba de acontecer. Na outra ponta, a da competência, apenas outros 500 000 obtiveram aproveitamento acima de 70%. Triste coincidência esse número. Significa que 92% dos candidatos ainda namoram a mediocridade. Posto de outra forma, menos da metade dos alunos das escolas públicas municipais e estaduais acertou 50% das questões. Em dez anos, a média nacional melhorou 10%. Nesse ritmo, levaremos décadas para democratizar o conhecimento. As consequências são previsíveis.
Diante da situação, alguém logo sugerirá, de novo, que nosso ensino se reduza ao mais básico dos básicos. Bê-á-bá. A lógica parece perfeita: melhor saber pouco e bem do que nada de muito. Questiono a solução. Ela ficou para trás, atropelada pela realidade. Num mundo cada vez mais complexo, mais algorítmico, todos precisamos ir além das quatro operações, inclusive quem dita as normas. As aulas devem proporcionar uma ampla visão de mundo, uma noção geral do que nos torna humanos. Não é bicho de sete cabeças. Dezenas de escolas atingem essa meta. Qual o seu segredo?
Vou chover no molhado: aprender exige esforço, estudo exige tempo de todos os envolvidos. Insisto nessa chuva: ler e entender um texto, assim como escrever e se fazer entendido, sempre será mais importante do que repetir o nome dos Césares. Além disso, uma excelente base em matemática ajuda a vida em todos os sentidos, óbvia constatação que ainda ignoramos. Também ignoramos que os professores carecem de incentivo e treinamento constante. Em muitos países, os mestres são valorizados como responsáveis pelo futuro. E no Brasil?
Retorno ao número. Ele sintetiza nosso impasse. Milhares de estudantes do ensino médio não sabem o que significa. Constato esse fato nas escolas onde faço palestras. Com a ajuda de computadores, foi calculado com até oito quatrilhões de casas decimais, sem dúvida uma prova de avanço tecnológico misturado a exagero de diletantismo, mas seu valor aproximado de 3,1416 precisa estar na cabeça de qualquer graduado. Além de útil para a vida, integra a cultura há milênios, desde antes dos egípcios. Permitir que alunos cheguem ao Enem sem conhecimento, como hoje ocorre, torna o aprendizado uma piada. De mau gosto. Nosso ensino precisa voltar às aulas. Passa da hora.
Giffoni, concordo com tudo que você disse e creio que decorar os afluentes do Amazonas ou os doze Césares não levarão à nada. Nossos alunos precisam de ler e entender e terem mais acesso à informação de qualidade. Parabéns pela qualidade do texto (que não é literário, mas bem que podia ser...rsrsrs)